A crônica de hoje vem a propósito do dia 13 de dezembro, aniversário de nascimento de Luiz Gonzaga, que veio ao mundo nessa data em 1912. A título de homenagem, há 18 anos, 13 de dezembro virou efeméride no calendário nacional, como o Dia do Forró, mesmo que esse gênero musical esteja assaz descaracterizado em relação ao forró genuíno do Velho Lua.
Tudo já se disse de Luiz Gonzaga. O repertório de metáforas e comparações em torno do seu nome parece ter-se exaurido até a última gota. Por isso, aqui não estou inventando epíteto algum para designá-lo, até porque estou certo que seu título mais justo é mesmo o de Rei do Baião. Entretanto, aliada ao talento, sempre vi na coragem outro dos dons natos de Gonzaga. Imagine um sanfoneiro nordestino no Rio de Janeiro dos anos 40, onde a música predominante tinha toda uma influência europeia.
As vozes que se ouviam eram as dos já consagrados Orlando Silva, Carlos Galhardo, Vicente Celestino, Francisco Alves e outros. Gonzagão cavou seu espaço e, corajosamente, impôs seu ritmo e, aos poucos, a sua voz. Dos cabarés da Lapa, migrou para os salões requintados e tornou-se astro da RCA, a maior gravadora daquela época. Em nada ele negou sua origem nordestina, dos sertões de Pernambuco: no modo de falar, notadamente. O detalhe, porém, mais fantástico de Luiz Gonzaga foi o seu característico chapéu de couro, complementado pelo gibão, à moda de um vaqueiro bravio nos meios mais chiques do Sudeste, ou mesmo um cangaceiro que trocara o rifle pela sanfona. Luiz Gonzaga foi um monstro, um mestre no rastro do qual uma legião de artistas conseguiu brilhar e galgar fama.
Particularmente, guardo na memória uma imagem da minha meninice, como se guarda uma joia preciosa a quatro chaves. Esta cena está gravada na minha mente, como um quadro adorado fixado na parede do cômodo mais nobre e íntimo da casa. Foi num dia qualquer do começo dos anos 80. Eu estava na bodeguinha do meu pai, pequena venda de beira de estrada, quando em frente estacionou um automóvel e dele desceram dois homens. O primeiro adentrou o pequeno salão e, ao dar bom dia, começou a puxar conversa com os circunstantes. Logo um dos populares, reparando detidamente naquela figura simpática e cheia de presença, indagou:
– Que mal pergunte, o Sr. é o Luiz Gonzaga? Ele respondeu, sorrindo:
– Seu criado.
Pronto, ali estava, em carne e osso, o Rei do Baião, na sua suprema simplicidade, tomando café ao pé do balcão do meu pai. Num átimo, uma vistosa roda de pessoas achegou-se para vê-lo. A meninada de um grupo escolar próximo abandonou a sala de aula e correu para ver de perto o Gonzagão, espontâneo, sem a sua indumentária de vaqueiro, sem chapéu e trajando calça e camisa simples. Ele abraçou a todos, conversou com roceiros, indagou do inverno, do lugar e qual o santo do nosso povo…
Meu pai, com quem aprendi a gostar mais do Gonzagão, parecia não acreditar que ali, junto ao balcão do seu modesto estabelecimento, estava o dono daquela voz que ele tanto escutava no rádio. De mim, parecia que sonhava. Luiz Gonzaga admirou um velho banco de aroeira que havia no salão, já polido pelo uso. E, ao pedir um palito de dente, meu pai, por brincadeira e para provocá-lo, partiu o palito em dois e deu uma ponta ao motorista e a outra a Luiz. Ele pegou o pedaço de palito e comentou, com voz e riso irônicos: “Cearense, sempre fazendo economia…” Em compensação, meu pai não aceitou o pagamento da despesa. Todos observaram que a parte detrás do seu carro estava pendurada pelo peso: era o porta-malas cheio de LPs. Depois de uma meia-hora de prosa, Gonzagão despediu-se, tomou novamente assento em seu automóvel e partiu rumo ao sertão dos Inhamuns.
E foi assim, por obra do acaso, que vi, quando menino, na minha frente, em carne, osso e simpatia, o grande astro que sempre adorei desde criança. E por conta disso, gozei dias de orgulho, a me sentir uma das pessoas mais privilegiadas deste mundo. E com razão.