Pelo menos desde meu tempo de rapazola, tenho por hábito cortar o cabelo com o Moésio, talvez em Canindé o mais antigo profissional ainda na ativa. Octogenário, e não há quem o diga. Durante todo esse período, se o traí alguma vez foi por força de circunstância, como aconteceu há quatro anos. Nessa ocasião, por conta da pandemia, Moésio saiu do centro da cidade e arrastou sua fiel clientela para a casa onde ele vive, num conjunto habitacional. E ali resolveu permanecer com seu salão, mesmo depois que a onda pestífera baixou a poeira.
E vem mesmo de tão longo tempo que sento na cadeira de barbeiro do Moésio, que hoje em dia, meus estimados fios brancos vão se apresentando cada vez mais, sem disfarce algum, principalmente nas têmporas. Não que eu os reprove nem me recuse por fina força submeter minha modesta vegetação capilar, que não exige tanto, a outro profissional, pois hoje em dia quase todos são capacitados por cursos. Exceção do Moésio, que herdou o ofício do pai, seu Joel, já há muito falecido, do tradicional salão Elite, onde, no mesmo ambiente, também trabalharam os irmãos Eurico e Celsinho, ambos já morando acima das nuvens.
Acontece que o freguês acostuma-se com o cabeleireiro/barbeiro, não apenas pelo corte a seu gosto, mas porque, com o tempo, vai-se consolidando entre ambos um estreito laço de amizade, um entrosamento pessoal e familiar, às vezes até confidente, como se a cadeira do barbeiro fosse o divã. Via de regra, os mesmos assuntos vêm à tona, as mesmas recordações, de amigos, acontecimentos etc.
Sem contar que na barbearia de sempre, reencontram-se velhos conhecidos, também fregueses fiéis, e ali se põe em dia o papo descontraído. A barbearia, ressalte-se, é o território onde todos os assuntos afloram, em especial, a vida do próximo (daí, decerto, vem o verbo ‘tesourar’, na acepção que tão bem conhecemos). E tudo fica ali, da porta pra dentro, entre quatro paredes, sem risco de vazar.
Há, em suma, muitos e bons motivos e vantagens no custo-benefício da relação barbeiro-cliente. Quando vem de longe, sacramentada, dá direito, inclusive, em tempo de vaca magra, de se meter um vale no salão. Neste caso, a regra exige pontualidade e perseverança, sob pena de ‘tesouradas’. A propósito, certa vez, enquanto eu cortava o cabelo, chega um sujeito, notório mau pagador, e aplica:
— Moésio, quero cortar o cabelo, mas só pago amanhã, pode ser?
Moésio, solícito sempre, apenas balançou a cabeça que sim. E nisto eu já notei seu desinteresse no indesejado freguês. Passou, passou, até que, de outra feita, veio-me à lembrança perguntar:
— Moésio, aquele camarada que naquele tempo (eu estiquei bem o naquele, pra dar ideia de passado) falou um corte fiado, pagou?
E o Moésio, suspendendo a tesoura e o pente, e me olhando compenetrado:
— Que nada! Ele já tá com a cabeça toda branca e até hoje eu não recebi!
2 Comentários
Kkkkkkkkkk
Muito bom, ler os causos que o Poeta PPP nos traz!
Excelente texto, com por menores, e as intimidades e a empatia entre barbeiro e cliente. Já se vão muitos janeiros qye aou seu cliente mensal. Antes dele quem fazia a tosa era seu pai Sr. Joel que foi barbeiro do papai e, dos meus avós Gervásio Martins e Pedro Moreira.